Na primeira vez em que estive no Uruguai, não me chamou tanta
atenção as carnes fumegantes nas parrilas, o famoso medio y medio do Mercado del Puerto, a onipresença da figura de
Artigas ou a solenidade atemporal de Montevidéu. Os detalhes eram mais
significativos: a polidez dos uruguaios, as livrarias repletas de pessoas nas
tardes da semana, os espetáculos de tango que irrompiam do nada no meio das
praças.
Contudo, entre todas as impressões, a que guardo com mais
espanto foi ver, no final da tarde, homens das mais diferentes classes sociais
colocarem os seus melhores ternos e blazers e irem para a rua. Não eram blazers
modernos ou que chamavam a atenção; ao contrário, eram casacos cansados, alguns
desiludidos e que tinham vivido tempos melhores, puídos e simples, mas, ainda
assim, resistentes. Eram ternos fiéis, feitos por alfaiates cujos nomes somente
o tecido ainda lembrava. Parte dos homens usavam gravatas antiquadas ou que não
combinavam com as camisas, em nós desleixados e amplos, não sufocando o
pescoço. Os mais velhos colocavam chapéus, que revelavam insuspeitada distinção:
eram panamás, chapéus coco, boinas e vi até uma cartola desajeitada, mas ainda
orgulhosa. No entanto, a grande maioria deles vestia uma calça social e um
blazer sobre a camisa, deixando a cabeça descoberta. Nos pés, sempre sapatos, imaculadamente
engraxados.
Para meu espanto, esta estranha procissão não se dirigia para
algum lugar que necessitasse de uma roupa mais formal, como um museu ou o
Teatro Solis. No Brasil, vejo as pessoas acostumadas a usarem terno por razões
profissionais ou compromissos, como formaturas, casamentos ou enterros. Por serem
trajados em ocasiões sérias, os ternos possuem diferentes idades e estilos,
aparentando certo desconforto em corpos que não mais lhe correspondem, tanto
que, na primeira oportunidade, as pessoas se livram deles com a alegria de
Papillon escapando da prisão. Contudo, os uruguaios pareciam acostumados a
usarem ternos, como se fossem tigres experimentando a pele correta, como se o
anormal fosse estar com outra vestimenta que não o terno.
Sem conversar entre si, irmanados na sua posição de homens vestidos
como se fossem soldados de uma tropa desconexa, eles se dirigiam até
cafeterias. Sentavam sozinhos em uma mesa e espiavam os cardápios, buscando o
café ideal para encerrar a jornada antes de retornar para as suas famílias.
Alguns compartilhavam mesas, mas as suas conversas eram com o mínimo de sons e
o máximo de significados, algo tão mágico que é impossível de explicar, ainda mais
se considerarmos o histrionismo das comunicações contemporâneas. As cafeterias
não tinham televisões ou pessoas inoportunas, tinham um garçom (também vestido
com compostura fora de época) ou um atendente ocupado em lustrar os copos
esperando uma enxurrada súbita de clientes desconhecidos. O tempo parecia parar
nas cafeterias uruguaias, enquanto os homens mergulhavam no silêncio das
xícaras.
Fascinavam-me os idosos que, vestidos com o máximo de
elegância que a sua condição social propiciava, sentavam-se junto às mesas, o
rosto emoldurado por fumaças, e ficavam em silêncio absoluto, imersos nas suas
rugas repletas de sombras. Era inevitável perguntar-me o que estavam sentindo
ou pensando. Em tudo, eles pareciam apologias à solidão. Lembravam muito os quadros
de Edward Hopper, com homens ou mulheres em cenários amplos que refletem e
intensificam o silêncio, a reflexão, a angústia singular de ser um humano
sozinho neste mundo repleto de vozes e peles, fúria e poeira.
Nesta época, cunhei uma frase que sempre me remete às paredes
circunspectas de Montevidéu: “os uruguaios são um povo tão digno que, para tomar
um café, precisam vestir ternos”. Toda generalização é perigosa, ainda mais
quando se trata de um país inteiro, e logo vi que estava incorrendo em um equívoco.
Os uruguaios não vestem os ternos para tomar um café; eles colocam as melhores
roupas por que consideram um ato de respeito ao outro saírem aprumados e com a
dignidade que eles merecem ver. Não se vestem para si mesmos ou para
impressionar; estão mais preocupados em deixar o outro confortável sabendo que viram
alguém trajado de forma digna. O maior ato de respeito que uma pessoa pode se
dar é vestir-se de forma apropriada à sua situação. Eu já enxerguei mendigos
vestidos de forma mais condizente do que altos empresários.
O que acaba me levando a uma constatação que, apesar de
novamente generalizar, aparenta ser universal: quando um homem quer se sentir
bem vestido, ele usa um terno. Não sei a origem da vestimenta ou a maneira pela
qual ela foi associada à elegância masculina, mas creio que as meninas do blog
podem explicar isto de forma altamente eficiente, muito melhor do que eu (e a
Wikipedia) conseguiríamos. Existe uma graduação no nível de elegância
emprestada ao terno: ele pode ser uma roupa feita para conferir dignidade a uma
pessoa ou a um evento; pode ser um símbolo de sofisticação e, ao mesmo tempo,
um elemento de sobriedade; pode ser jovem, mas também pode ser vetusto; pode
ser a expressão de um deboche ou a manifestação silenciosa da responsabilidade
de alguém. Pode também ser uma presença, mas também pode representar ausência.
Quando mulheres o usam, brincam com o estereótipo masculino e também agregam
insuspeitadas e interessantes curvas para uma roupa sólida.
A grande maioria dos homens tende a pensar o terno como um
mero objeto que concede riqueza ao corpo. Ou uma forma
de atrair garotas, como diria o sábio ZZ Top em “Sharp-dressed man”: “clean
shirt, new shoes / silk suit, black tie / I don’t need a reason why / They come
running just as fast as they can / ‘Coz every girl crazy ‘bout a Sharp-dressed
man”. Tem boas chances
de ser realidade: um homem que sabe se vestir é alguém que sabe cuidar de si e,
por conseguinte, da sua companheira. A evolução não preservou somente o mais
rápido, o mais forte ou o mais inteligente; também pode ter ajudado aqueles que
se vestem com maior segurança. Como o terno anda no espaço entre a seriedade da
pessoa que lhe veste e a elegância com que compõe o corpo masculino, não
espanta que ele chame atenção e esteja carregado de simbolismos e fantasias.
Despir um terno é como retirar a armadura do guerreiro, tirando a compostura
para expor a fragilidade e a pele do homem. Para as mulheres, arrancar a
armadura de tecido de um homem é um jogo sensual que deixa o outro aos seus
pés.
Não sei o motivo exato pelo qual os uruguaios vestem blazers
e ternos para irem tomar café, e acredito que nem eles sabem. Como todas, a
resposta pode estar na literatura e na sua capacidade de captar o intangível.
Juan Carlos Onetti (1909-1994) é um dos maiores prosadores da realidade urbana
do Uruguai; seus contos estão carregados da agonia de um país anacrônico que,
ao mesmo tempo em que deseja voltar os olhos para o futuro, continua aferroado
naquilo que já se passou. Sua prosa se situa entre o extremo realismo e o mais
desvairado imaginário e, como não poderia deixar de ser, as cafeterias acabam
surgindo nos contos de Onetti como um espaço de instabilidade e, por este
motivo, um local onde as pessoas são elegantes e devem se comportar de maneira
sóbria.
No conto “Bem vindo, Bob”, o narrador visita diariamente um
café onde se encontra sempre com os mesmos amigos, quase com os mesmos
diálogos, fazendo com que a rotina esmagadora ingresse no caminho do fantástico
ao mesmo momento em que ele passa a identificar a amada perdida com outro homem.
Não existem descrições das roupas usadas pelo narrador, mas os seus
preparativos para visitar a cafeteria e a insistência em realizar este ato
permite antever que aquilo é mais uma cerimônia do que um simples passeio, um
ritual a ser realizado entre homens. Um trecho é emblemático: “Agora faz mais
ou menos um ano que vejo Bob quase todos os dias, no mesmo café, cercado pelas
mesmas pessoas. Quando nos apresentaram – hoje se chama Roberto -, compreendi que
o passado não tem tempo e que o ontem se junta ali com a data de dez anos
atrás”. A insistência em usar ternos para frequentar cafeterias também pode ser
uma forma de fazer o tempo não correr – ou voltar para o passado. Para Onetti,
ternos e cafeterias se tornam pedaços do eterno, uma maneira de burlar a passagem
incessante da areia pelo gargalo.
Em outro conto de Juan Carlos Onetti, “Regresso ao Sul”, o
leitor se depara com um narrador sentado em uma cafeteria, lembrando de fatos
que lhe sucederam. Lendo este conto com a imagem da solidão expressa nos
quadros de Hopper, o leitor tem um vislumbre dos abismos pelos quais os
frequentadores das cafeterias passam nos seus silêncios. A seriedade dos ternos
e blazers pode significar uma âncora que prende o homem à realidade,
impedindo-o de mergulhar no desespero dos próprios pensamentos. Em vários
momentos deste conto, os personagens entram em cafeterias, mas um detalhe acaba
se destacando: primeiro eles vão em bares e bebem cervejas e, ao final, antes
de ir para casa, acabam parando na cafeteria. É a transição de um mundo lúdico
para a reflexão que se esconde neste movimento. Tomar um café também é uma
forma de reencontrar consigo mesmo. E existe melhor forma de se concentrar nos
próprios pensamentos do que usando uma roupa repleta de dignidade? Um terno
também pode dar para o homem a ideia de que é uma fortaleza indevassável, um
escudo que protege a sua alma. Como escrevi antes, o Uruguai me ensinou que,
mais do que uma roupa, um terno pode ter muitos significados e possibilidades.
Talvez isto explique o fato dele ser associado à segurança masculina, uma
proteção com a adequada dose de desconforto que todo homem exige para provar a
sua validade, ainda mais diante deste mundo de maciez que o cerca. Os ternos
são ásperos como a natureza masculina.
No caso daqueles que colocam ternos para frequentar
cafeterias, o terno representa um estatuto de sobriedade, um respeito ao
passado, uma nostalgia daqueles tempos em que os homens eram respeitáveis e respeitados.
Talvez os uruguaios esperem o retorno desta época ou estejam homenageando
ídolos do passado. De qualquer maneira, a utilização desta roupa é uma forma de
dizer ao mundo que, quando todos os valores caírem e quando toda a Humanidade
mergulhar no caos ético, este abismo movediço onde tudo vira um amálgama de
dúvidas do como proceder, ainda existirão pessoas sóbrias e imutáveis que
seguram a lanterna do agir correto. Qualquer homem que se veste com sobriedade
para um evento comum é um homem que respeita a si mesmo e aos outros. Não é o
terno que faz o homem, mas ajuda bastante.
Texto: Gustavo Melo Czekster (advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor, autor do livro de contos "O Homem Despedaçado").
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