terça-feira, 23 de abril de 2013

Ternos e Café.




Na primeira vez em que estive no Uruguai, não me chamou tanta atenção as carnes fumegantes nas parrilas, o famoso medio y medio do Mercado del Puerto, a onipresença da figura de Artigas ou a solenidade atemporal de Montevidéu. Os detalhes eram mais significativos: a polidez dos uruguaios, as livrarias repletas de pessoas nas tardes da semana, os espetáculos de tango que irrompiam do nada no meio das praças.
Contudo, entre todas as impressões, a que guardo com mais espanto foi ver, no final da tarde, homens das mais diferentes classes sociais colocarem os seus melhores ternos e blazers e irem para a rua. Não eram blazers modernos ou que chamavam a atenção; ao contrário, eram casacos cansados, alguns desiludidos e que tinham vivido tempos melhores, puídos e simples, mas, ainda assim, resistentes. Eram ternos fiéis, feitos por alfaiates cujos nomes somente o tecido ainda lembrava. Parte dos homens usavam gravatas antiquadas ou que não combinavam com as camisas, em nós desleixados e amplos, não sufocando o pescoço. Os mais velhos colocavam chapéus, que revelavam insuspeitada distinção: eram panamás, chapéus coco, boinas e vi até uma cartola desajeitada, mas ainda orgulhosa. No entanto, a grande maioria deles vestia uma calça social e um blazer sobre a camisa, deixando a cabeça descoberta. Nos pés, sempre sapatos, imaculadamente engraxados.
Para meu espanto, esta estranha procissão não se dirigia para algum lugar que necessitasse de uma roupa mais formal, como um museu ou o Teatro Solis. No Brasil, vejo as pessoas acostumadas a usarem terno por razões profissionais ou compromissos, como formaturas, casamentos ou enterros. Por serem trajados em ocasiões sérias, os ternos possuem diferentes idades e estilos, aparentando certo desconforto em corpos que não mais lhe correspondem, tanto que, na primeira oportunidade, as pessoas se livram deles com a alegria de Papillon escapando da prisão. Contudo, os uruguaios pareciam acostumados a usarem ternos, como se fossem tigres experimentando a pele correta, como se o anormal fosse estar com outra vestimenta que não o terno.
Sem conversar entre si, irmanados na sua posição de homens vestidos como se fossem soldados de uma tropa desconexa, eles se dirigiam até cafeterias. Sentavam sozinhos em uma mesa e espiavam os cardápios, buscando o café ideal para encerrar a jornada antes de retornar para as suas famílias. Alguns compartilhavam mesas, mas as suas conversas eram com o mínimo de sons e o máximo de significados, algo tão mágico que é impossível de explicar, ainda mais se considerarmos o histrionismo das comunicações contemporâneas. As cafeterias não tinham televisões ou pessoas inoportunas, tinham um garçom (também vestido com compostura fora de época) ou um atendente ocupado em lustrar os copos esperando uma enxurrada súbita de clientes desconhecidos. O tempo parecia parar nas cafeterias uruguaias, enquanto os homens mergulhavam no silêncio das xícaras.
Fascinavam-me os idosos que, vestidos com o máximo de elegância que a sua condição social propiciava, sentavam-se junto às mesas, o rosto emoldurado por fumaças, e ficavam em silêncio absoluto, imersos nas suas rugas repletas de sombras. Era inevitável perguntar-me o que estavam sentindo ou pensando. Em tudo, eles pareciam apologias à solidão. Lembravam muito os quadros de Edward Hopper, com homens ou mulheres em cenários amplos que refletem e intensificam o silêncio, a reflexão, a angústia singular de ser um humano sozinho neste mundo repleto de vozes e peles, fúria e poeira.
Nesta época, cunhei uma frase que sempre me remete às paredes circunspectas de Montevidéu: “os uruguaios são um povo tão digno que, para tomar um café, precisam vestir ternos”. Toda generalização é perigosa, ainda mais quando se trata de um país inteiro, e logo vi que estava incorrendo em um equívoco. Os uruguaios não vestem os ternos para tomar um café; eles colocam as melhores roupas por que consideram um ato de respeito ao outro saírem aprumados e com a dignidade que eles merecem ver. Não se vestem para si mesmos ou para impressionar; estão mais preocupados em deixar o outro confortável sabendo que viram alguém trajado de forma digna. O maior ato de respeito que uma pessoa pode se dar é vestir-se de forma apropriada à sua situação. Eu já enxerguei mendigos vestidos de forma mais condizente do que altos empresários.
O que acaba me levando a uma constatação que, apesar de novamente generalizar, aparenta ser universal: quando um homem quer se sentir bem vestido, ele usa um terno. Não sei a origem da vestimenta ou a maneira pela qual ela foi associada à elegância masculina, mas creio que as meninas do blog podem explicar isto de forma altamente eficiente, muito melhor do que eu (e a Wikipedia) conseguiríamos. Existe uma graduação no nível de elegância emprestada ao terno: ele pode ser uma roupa feita para conferir dignidade a uma pessoa ou a um evento; pode ser um símbolo de sofisticação e, ao mesmo tempo, um elemento de sobriedade; pode ser jovem, mas também pode ser vetusto; pode ser a expressão de um deboche ou a manifestação silenciosa da responsabilidade de alguém. Pode também ser uma presença, mas também pode representar ausência. Quando mulheres o usam, brincam com o estereótipo masculino e também agregam insuspeitadas e interessantes curvas para uma roupa sólida.
A grande maioria dos homens tende a pensar o terno como um mero objeto que concede riqueza ao corpo. Ou uma forma de atrair garotas, como diria o sábio ZZ Top em “Sharp-dressed man”: “clean shirt, new shoes / silk suit, black tie / I don’t need a reason why / They come running just as fast as they can / ‘Coz every girl crazy ‘bout a Sharp-dressed man”. Tem boas chances de ser realidade: um homem que sabe se vestir é alguém que sabe cuidar de si e, por conseguinte, da sua companheira. A evolução não preservou somente o mais rápido, o mais forte ou o mais inteligente; também pode ter ajudado aqueles que se vestem com maior segurança. Como o terno anda no espaço entre a seriedade da pessoa que lhe veste e a elegância com que compõe o corpo masculino, não espanta que ele chame atenção e esteja carregado de simbolismos e fantasias. Despir um terno é como retirar a armadura do guerreiro, tirando a compostura para expor a fragilidade e a pele do homem. Para as mulheres, arrancar a armadura de tecido de um homem é um jogo sensual que deixa o outro aos seus pés.
Não sei o motivo exato pelo qual os uruguaios vestem blazers e ternos para irem tomar café, e acredito que nem eles sabem. Como todas, a resposta pode estar na literatura e na sua capacidade de captar o intangível. Juan Carlos Onetti (1909-1994) é um dos maiores prosadores da realidade urbana do Uruguai; seus contos estão carregados da agonia de um país anacrônico que, ao mesmo tempo em que deseja voltar os olhos para o futuro, continua aferroado naquilo que já se passou. Sua prosa se situa entre o extremo realismo e o mais desvairado imaginário e, como não poderia deixar de ser, as cafeterias acabam surgindo nos contos de Onetti como um espaço de instabilidade e, por este motivo, um local onde as pessoas são elegantes e devem se comportar de maneira sóbria.
No conto “Bem vindo, Bob”, o narrador visita diariamente um café onde se encontra sempre com os mesmos amigos, quase com os mesmos diálogos, fazendo com que a rotina esmagadora ingresse no caminho do fantástico ao mesmo momento em que ele passa a identificar a amada perdida com outro homem. Não existem descrições das roupas usadas pelo narrador, mas os seus preparativos para visitar a cafeteria e a insistência em realizar este ato permite antever que aquilo é mais uma cerimônia do que um simples passeio, um ritual a ser realizado entre homens. Um trecho é emblemático: “Agora faz mais ou menos um ano que vejo Bob quase todos os dias, no mesmo café, cercado pelas mesmas pessoas. Quando nos apresentaram – hoje se chama Roberto -, compreendi que o passado não tem tempo e que o ontem se junta ali com a data de dez anos atrás”. A insistência em usar ternos para frequentar cafeterias também pode ser uma forma de fazer o tempo não correr – ou voltar para o passado. Para Onetti, ternos e cafeterias se tornam pedaços do eterno, uma maneira de burlar a passagem incessante da areia pelo gargalo.
Em outro conto de Juan Carlos Onetti, “Regresso ao Sul”, o leitor se depara com um narrador sentado em uma cafeteria, lembrando de fatos que lhe sucederam. Lendo este conto com a imagem da solidão expressa nos quadros de Hopper, o leitor tem um vislumbre dos abismos pelos quais os frequentadores das cafeterias passam nos seus silêncios. A seriedade dos ternos e blazers pode significar uma âncora que prende o homem à realidade, impedindo-o de mergulhar no desespero dos próprios pensamentos. Em vários momentos deste conto, os personagens entram em cafeterias, mas um detalhe acaba se destacando: primeiro eles vão em bares e bebem cervejas e, ao final, antes de ir para casa, acabam parando na cafeteria. É a transição de um mundo lúdico para a reflexão que se esconde neste movimento. Tomar um café também é uma forma de reencontrar consigo mesmo. E existe melhor forma de se concentrar nos próprios pensamentos do que usando uma roupa repleta de dignidade? Um terno também pode dar para o homem a ideia de que é uma fortaleza indevassável, um escudo que protege a sua alma. Como escrevi antes, o Uruguai me ensinou que, mais do que uma roupa, um terno pode ter muitos significados e possibilidades. Talvez isto explique o fato dele ser associado à segurança masculina, uma proteção com a adequada dose de desconforto que todo homem exige para provar a sua validade, ainda mais diante deste mundo de maciez que o cerca. Os ternos são ásperos como a natureza masculina.
No caso daqueles que colocam ternos para frequentar cafeterias, o terno representa um estatuto de sobriedade, um respeito ao passado, uma nostalgia daqueles tempos em que os homens eram respeitáveis e respeitados. Talvez os uruguaios esperem o retorno desta época ou estejam homenageando ídolos do passado. De qualquer maneira, a utilização desta roupa é uma forma de dizer ao mundo que, quando todos os valores caírem e quando toda a Humanidade mergulhar no caos ético, este abismo movediço onde tudo vira um amálgama de dúvidas do como proceder, ainda existirão pessoas sóbrias e imutáveis que seguram a lanterna do agir correto. Qualquer homem que se veste com sobriedade para um evento comum é um homem que respeita a si mesmo e aos outros. Não é o terno que faz o homem, mas ajuda bastante.


Texto: Gustavo Melo Czekster (advogado, mestre em Literatura Comparada pela UFRGS e escritor, autor do livro de contos "O Homem Despedaçado").

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